Nas palavras de Flávio Tartuce1o testamento representa, em sede de Direito das Sucessões, a principal forma de expressão e exercício da autonomia privada, da liberdade individual, como típico instituto mortis causa.” No verdadeiro popular, testamento é o ato que expressa a vontade de alguém em relação a divisão de seu patrimônio após sua morte.

O atual Código Civil não normatizou o significado de testamento, mas cuidou, com propriedade, de indicar os modelos de testamento e os requisitos de validade de cada um deles, conforme se infere dos artigos 1.857 e seguintes.

Um documento importante a se buscar logo após o falecimento é a certidão negativa de testamento, documento que qualquer pessoa poderá obter via site do Colégio Notarial do Brasil (CESEC). Este documento atesta a existência de testamento público (registrado em cartório).

Havendo testamento, público ou particular, o primeiro procedimento a ser tomado será a abertura deste testamento por via judicial para devida análise da legalidade e sentença homologatória. Após a homologação, aí sim é que se deve proceder com a abertura do inventário.

Observando a norma prescrita no artigo 610 do Código de Processo Civil (CPC), tem-se que, havendo testamento devidamente homologado, obrigatoriamente deverá ser aberto o inventário na forma judicial:

 

Art. 610. Havendo testamento ou interessado incapaz, proceder-se-á ao inventário judicial.

 

Porém uma controvérsia chegou a julgamento no Superior Tribunal de Justiça (STJ) sobre a possibilidade de homologação de inventário extrajudicial quando há testamento. Controvertida a matéria, pois há um conflito entre a norma do caput do art. 610 e a norma do § 1º.

Contudo, ao analisar o caso sub judice, a Ministra Nancy Andrighi (íntegra da decisão) reconheceu a antinomia das normas e reafirmou a crítica à interpretação literal do art. 610 do CPC. Nas palavras da ministra:

 

Se bem examinada a questão, vê-se que a primeira interpretação, literal, tornaria absolutamente desnecessário e praticamente sem efeito a primeira parte do § 1º, na medida em que a vedação ao inventário judicial na hipótese de interessado incapaz já está textualmente enunciada no caput. Essa primeira possível interpretação, aliás, é duramente criticada pela doutrina, iniciando-se pelas lições de Flávio Tartuce:(…)

 

Após afastar a interpretação literal dada pelos juízos inferiores, ela discorreu sobre a melhor aplicação da lei ao caso concreto, buscando um resultado que assegurasse a autonomia da vontade das partes, desjudicialização dos conflitos e adoção de métodos adequados de resolução das controvérsias:

 

Como se percebe, a regra segundo a qual o testamento, em tese, impediria a realização de partilha extrajudicial está fundada na percepção do legislador de que os testamentos são potencialmente geradores de conflitos entre os herdeiros, o que tornaria necessariamente litigioso o objeto do inventário e inutilizaria os atos praticados na seara extrajudicial.
A exposição de motivos da Lei nº 11.441/2007, pois, reforça a tese de que haverá a necessidade de inventário judicial sempre que houver testamento, salvo quando os herdeiros sejam capazes e concordes, justamente porque a capacidade para transigir e a inexistência de conflito entre os herdeiros derruem inteiramente as razões expostas pelo legislador.
Some-se a isso, ainda, o fato de que as legislações contemporâneas têm estimulado fortemente a autonomia da vontade, a desjudicialização dos conflitos e a adoção de métodos adequados de resolução das controvérsias, de modo que a via judicial deve ser reservada somente à hipótese em que houver litígio entre os herdeiros sobre o testamento que influencie na resolução do inventário.

 

O entendimento firmado pela ministra Nancy Andrighi não é uma inovação no STJ, trata-se de entendimento já firmado em outros julgados. Porém do ponto de vista técnico, ele é de suma importância por ter sido emanado pelo Tribunal do Cidadão.

Podemos dizer que o recado dado pela justiça à sociedade é bem claro. O judiciário deve respeitar a autonomia da vontade das partes, quando maiores e capazes, e se exprimida por negócio jurídico válido deve evitando-se a judicialização desnecessária de demandas que não possuem lide.

 

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[1] Tartuce, Flávio. Direito Civil: direito das sucessões – v. 6 / Flávio Tartuce. – 12. ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2019.

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